Aguimon Alves, 24/03/2021
Induzir as
pessoas a erros de julgamento usando informação verdadeira é um ato sofisticado
de desonestidade intelectual. Trata-se de uma prática de quem domina a
linguagem e pretende transmitir um juízo de valor depreciativo somente pela
leitura dos títulos das reportagens. Na manipulação da linguagem os mesmos
fatos podem ter manifestações de apoio, ou apenas em tom de críticas
construtivas, ou podem ter manifestações virulentas e recheadas de palavras e
expressões da moda. Tudo dependerá da pessoa envolvida.
Nos três títulos de notícias apresentados a seguir envolvem autoridades cujos nomes substituí por personagens fictícios na intenção de não influenciar o leitor. No final repito os títulos com os nomes dessas autoridades e apresento as datas das reportagens e a fonte. São três reportagens que saíram do mesmo órgão de imprensa, em datas diferentes e sobre o mesmo tema, EDUCAÇÃO. Mas não vá logo para o final do texto. Aguarde.
1. “Capitão Asiático deixou de gastar mais de
R$ 20 bilhões em Educação”.
No título da reportagem temos identificado o vilão
e o ato horrendo que ele praticou. Pelo título depreende-se que existia uma
soma vultosa de recursos, mas a autoridade não gastou os recursos disponíveis com
um setor tão carente. Se não foi a falta de recursos que motivou tal conduta, o
que você diria a respeito?
2. “José sobre Orçamento:
não foi apenas educação que sofreu corte”.
No título desta reportagem o vilão José foi mais
cruel. Pelo que se deduz do título a autoridade decidiu fazer cortes que foram
além da educação, setor que é historicamente alardeado como carente de recursos.
Se você tivesse poderes para aconselhar a autoridade talvez exclamasse e perguntasse:
“Até a educação! Por que não libera este setor dos cortes?
3. “Tício veta
projeto que garantia internet gratuita para alunos e professores da rede
pública.”
Mas isto é uma
maldade monumental! É o pensamento quase unânime de professores. Quem defenderia
uma atitude tão horrível? Realmente tal conduta revela a crueldade de quem não
se importa com professores e alunos da rede pública. Imagino que este deva ser
o pensamento dos desinformados.
Neste caso, a
manipulação da linguagem acontece quando o título informa apenas o nome do
vilão que praticou veto contra um bom projeto de lei. Ainda que se diga no
corpo da notícia, sempre em letras miúdas, os motivos do veto, o título já foi
suficiente para se construir um juízo de valor depreciativo. É neste momento
que os desonestos intelectuais entram em ação replicando exaustivamente uma
arrumação de palavras que atende sua visão idiossincrática de mundo.
Títulos bem
manipulados funcionam muito bem num país onde a aversão à leitura já está
atingindo até quem tem nível de graduação. Se leitura já é um problema, imagine
a interpretação!
Explicando a reportagem de número três: todo
projeto de lei que prevê custo, necessariamente, tem que ser apresentada a
estimativa de impacto orçamentário, conforme estampado na Lei Complementar
101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), veja:
Art. 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento
de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado
de:
I – estimativa do impacto
orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois
subsequentes.
Trata-se de uma exigência objetiva que é facilmente verificável pelo departamento jurídico de quem tem a responsabilidade de sancionar ou vetar qualquer projeto de lei que gere despesa e não indique a fonte de recursos, principalmente quando o projeto de lei prevê despesas no próprio ano em que a lei orçamentária está sendo executada.
Se um governante alega a falta de estimativa de impacto orçamentário para vetar um projeto de lei, não cabe à mídia divulgadora do fato simplesmente dizer este foi o entendimento do governo. Ou existe a tal estimativa ou não existe. Cabe à mídia verificar a existência ou não de um dado concreto. Portanto, não há o que se falar em “entendimento do governo”.
Aprovar
projetos de leis sem a previsão de impacto orçamentário faz parte do jogo
político entre parlamentares e Poder Executivo, geralmente na intenção de
desgastar a imagem do Chefe do Poder Executivo, sobretudo quando há alguma
resistência na liberação de cargos.
Por melhor que
seja a intenção do referido projeto de lei, não vetar significaria incorrer em
crime de responsabilidade previsto na Constituição Brasileira/1988, veja:
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente
da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente,
contra:
VI - a lei orçamentária.
Lei orçamentária é a Lei que prevê todos os gastos do governo (federal, estadual e municipal) para o ano seguinte ao de sua aprovação. Toda proposta legislativa que implicar em despesa terá que apontar a fonte de custeio, ou seja, de onde sairá o dinheiro para custear uma determinada política ou projeto social. Se este quesito não for atendido, obrigatoriamente o Chefe do Executivo terá que vetar o projeto de lei, sob pena de as mesmas pessoas que vierem a criticar o veto passarem a acusar o Chefe do Executivo de cometer crime de responsabilidade. Veja, não importa o motivo do veto, o que importa é quem o praticou. Os atos não têm a menor importância, o importante é depreciar quem praticou os atos. É desta forma que pensam os desonestos intelectuais.
E você sabe o que acontece com o governante (federal, estadual ou municipal) que comete crime de responsabilidade? Acho que sim.
Mas, retornando aos títulos das reportagens acima, agora vou
colocar os nomes verdadeiros dos personagens, as datas e a fonte.
Primeiro título:
1.
“Governo Lula deixou de gastar mais de R$ 20 bilhões em Educação”. (O Globo, 08/09/2008).
Não lembro que nesta época professores, militantes partidários e artistas em geral tenham cuspido as palavras de ordem: fascista, genocida, machista. Existia um governo legitimamente eleito e as pessoas criticavam ou elogiavam, simples assim.
Segundo
título:
2. “Lula sobre Orçamento:
não foi apenas educação que sofreu corte”. (O Globo, 01/06/2010).
Também não lembro da vulgarização das palavras
fascista, genocida, machista, racista e impeachment. Pelo contrário,
professores, intelectuais e artistas em geral fizeram campanha para eleger a
sucessora do vilão que, de novo, cortou vultosas verbas da educação.
Terceiro título:
3. “Bolsonaro veta projeto que garantia internet
gratuita para alunos e professores da rede pública”. (O Globo de 19/03/2021).
Neste terceiro título de reportagem, que envolve o
mesmo assunto, educação, o tratamento foi completamente diferente. Rufaram os
tambores: fascista! Genocida! Racista! Negacionista! Impeachment! Aliás, esses
tambores estão rufando desde antes da posse em 01/01/2019, inconformados com a perda do poder. Parece que só tem legitimidade as eleições que elegem governos que se identificam com partidos de esquerda.
Mas muitos, cinicamente, diriam: “agora é
diferente, estamos numa pandemia”. Se não fosse a pandemia, seriam os incêndios
na Amazônia mais quentes do que os da Califórnia; se não fossem os incêndios,
seria o derramamento de óleo no mar; e se não fosse óleo no mar? Um zumbi
brotaria do chão e perguntaria: tem algum cometa se aproximando da Terra?
O terceiro título
de reportagem acima apresentado deveria ser o seguinte:
“Projeto de
lei que garantia internet para professores e alunos foi vetado pelo governo
federal porque não apresentava estimativa de impacto orçamentário”.
Um título com
apenas duas ou três linhas daria a informação completa: informaria o veto, a
autoridade que praticou e os motivos jurídicos do veto. Mas um título deste
tipo não seria replicado.
Todo governante quando senta na cadeira do Poder Executivo se vê na posição de tomar decisões impopulares. E isto não foi diferente com os governos Fernando Henrique, Lula e Dilma ou qualquer outro governo desde quando inventaram as eleições.
Explicando melhor as decisões impopulares:
o orçamento do governo (federal, estadual ou municipal) é feito no ano anterior
ao de sua execução tomando por base uma determinada previsão de receita. Os técnicos
analisam cenários da economia, olham para as arrecadações dos anos anteriores e
estimam os gastos do ano seguinte.
Quando inicia o ano em que será executado o
orçamento, a cada dois meses é feita avaliação da arrecadação e dos cenários
que se vislumbram. Se fatos negativos ocorreram, estiverem ocorrendo ou estão
prestes a ocorrerem (diminuição das atividades econômicas, conflitos em áreas de produção de
petróleo, por exemplo), então os técnicos refazem os cálculos e sugerem ao
governo o contingenciamento de valores nos diversos ministérios. Em outros
termos, parcelas de verbas são retidas no orçamento, mas somente aquelas que compõem as despesas não obrigatórias. Tão logo a arrecadação melhore, o contingenciamento é
liberado.
O que a imprensa tem por hábito chamar de “corte”,
na verdade tecnicamente chama-se contingenciamento. Talvez use a palavra “corte”
por ser menor. Darei o benefício da dúvida.
Independentemente do partido no poder podemos nos deparar com notícias desagradáveis inúmeras vezes. A única coisa que pode tornar a notícia com maior ou menor potencial depreciativo é o Chefe do Executivo do momento e não a notícia ruim em si. Veja mais três títulos:
“Governo federal anuncia o
maior corte no orçamento da história”. G1, 23/05/2015.
“Programas sociais têm cortes de até 87% com
Dilma”. O Globo, 01/05/2016
“Educação perde R$ 10,5 bi em 2015”. Jornal
Estadão, 02/01/2016.
Na época houve protestos. Mas não houve a
vulgarização dos termos fascista, genocida, negacionista, racista, machista e impeachment, numa
maliciosa deturpação e uso ideológico desses termos. Os desonestos intelectuais congelaram memórias anteriores a 2019.
0 Comentários