Introdução
Nas três manchetes a seguir, o que há em comum
entre elas?
No site
G1 de 29/10/2020 (acesso em 31/10/2020) saiu a seguinte manchete:
Ataque a faca deixa 3 mortos em Nice, na França; 1
vítima foi decapitada
No site Uol 29/10/2020 (acesso em 31/10/2020) temos
o seguinte:
Ataque com faca em Nice, na França, deixa três
mortos e vários feridos
No site Carta Capital, também de 29/10/2020 (acesso em 31/10/2020) foi
publicada a seguinte manchete:
Ataque a faca em igreja na França deixa ao menos
três mortos e feridos
Nas três manchetes o leitor deve ter percebido a
ausência de “gatilhos emocionais”. Quando digo “gatilhos emocionais” refiro-me
ao processo de desumanização da linguagem quando o evento não atende a
determinados propósitos. Mais adiante o leitor entenderá o como funciona a
manipulação da linguagem jornalística.
O cérebro recebe com baixíssima carga emocional uma
notícia que diz: Ataque com faca (…) deixa três mortos e vários feridos.
O título não disse quem atacou, a motivação e qual era o perfil das vítimas. No
corpo da notícia vêm as informações cuidadosamente trabalhadas para não
disparar o gatilho das emoções. E mesmo quando há notícia dizendo que uma das
vítimas era uma mulher negra, parece que o “Vida Negras Importam” (Black Lives Matter), não se importaram com este caso específico. Não
houve interesse das grandes mídias e das organizações de direitos humanos em
disparar o gatilho das manifestações de ruas, questionando de forma veemente os
estrangeiros intolerantes que matam pessoas dentro de templos cristãos.
Parece-me que o trágico evento foi abordado de forma reduzida pelas referidas
reportagens como se fosse um “novo normal” matar pessoas a facadas dentro de
igrejas.
Análise do
desdobramento do primeiro título
Ataque a faca deixa 3 mortos em Nice, na França; 1
vítima foi decapitada
O desdobramento desta manchete trouxe o seguinte no subtítulo:
Presidente francês classificou o ataque como
terrorismo; o suspeito, um homem de 21 anos, foi baleado pela polícia durante a
ação e está preso.
Notem que o agressor não foi adjetivado como um
intolerante religioso ou como extremista. Pelo contrário, ele é apenas um homem
suspeito; nem agressor ele é. Na sequência do subtítulo a notícia começa
com o primeiro parágrafo reforçando a ausência do agressor com a seguinte
frase: Um ataque a faca deixou três mortos (…). E prossegue sem adjetivar o agressor dizendo o seguinte: As
vítimas são uma idosa, que foi decapitada, o sacristão da basílica e uma brasileira de 44 anos. O suspeito de ter cometido o
atentado, um homem de 21 anos, foi baleado pela polícia e
depois preso.
Notem que, mesmo empregando o forte termo “decapitada”, não há exploração dos
gatilhos emocionais na notícia porque a violência não foi associada a uma
determinada categoria de pessoas ou grupo. Aliás, o agressor em momento algum
foi adjetivado, pois o sujeito ativo da agressão foi classificado como
“suspeito”, conforme mencionado, ou seja, apenas um homem despido de religião,
de origem, de cor, de ideologia. Um homem sem rosto.
Somente quase no final da notícia é que se pode
deduzir alguma particularidade do agressor, conforme se depreende do
trecho: (…) o homem considerado
suspeito gritou "Allahu Akbar" (Deus é grande) várias
vezes antes de ser baleado e preso. Notem que na
redação não há termos que atribuem atos violentos praticados por quem matou
três pessoas, pelo contrário, quem sofreu violência foi o “homem considerado
suspeito”, pois ele foi “baleado e preso”. Se alguém é apenas suspeito, qual a
razão de os policiais baleá-lo e prendê-lo? Num país democrático, se alguém não
oferece resistência e nem está portando arma, o máximo que a polícia faz com um
simples suspeito é a sua detenção em busca de informações.
Análise
do desdobramento do segundo título
Ataque com faca em Nice, na França, deixa três
mortos e vários feridos
O primeiro parágrafo da notícia encabeçada pelo
título acima diz o seguinte:
Três pessoas morreram, uma delas degolada, e várias
ficaram feridas hoje na cidade francesa de Nice em um ataque a faca nas
proximidades da basílica de Notre-Dame, informaram fontes policiais e a
prefeitura local.
Notem também que, mesmo com o uso do termo
“degolada”, não há presença de linguagem com carga emocional porque a redação
do trecho acima sequer faz menção ao sujeito ativo da ação que resultou nas
mortes. É como se não existisse sujeito da ação, ou seja, pessoas morreram, uma
delas degolada, outras ficaram feridas em ataque à faca. Mas quem causou a
tragédia? Não foi apresentado um elemento humano com características
específicas e que se identificasse com um grupo, justamente para não acionar o
gatilho das emoções. Este vazio já foi consolidado no título e ficou reforçado
no corpo da notícia. Contra quem ou qual grupo o leitor deve se posicionar se
não há alguém específico segurando a faca?
No quarto parágrafo é que aparece uma possível
pista do perfil do agressor com o seguinte trecho: Segundo o prefeito,
o suspeito "repetiu indefinidamente 'Allahu Akbar' (Alá é o maior) quando
estava sendo tratado no local." Repetir várias vezes a expressão
“Alá é o maior” pode nada ter a ver com o evento em si, já que até pessoas não
religiosas costumam invocar o nome de Deus quando em situação difícil: Oh, meu
Deus! Além disto, percebe-se, novamente, o suave termo “suspeito” utilizado
pela mídia. E quem disse que o agressor gritou "Alá é o maior" foi o
prefeito da cidade de Nice, pois a sua fala está entre aspas. O evento
noticiado não teve agressor, apenas um suspeito, segundo a notícia
jornalística.
Não estou falando de um agressor que tenha
evaporado e ninguém viu, mas de alguém que foi baleado e preso por
apresentar-se numa situação de flagrante. Invocar o título de
"suspeito" numa prisão em flagrante soa mais como manipulação da
linguagem do que honestidade com o fato. Se o suposto agressor fosse preso dias
depois ou horas depois em situação totalmente diferente da cena do crime,
então, é justo falar em "suspeito".
Considerando que a maioria dos “leitores” encerram
a leitura no título da manchete, é estratégico deixar somente no quarto
parágrafo alguma pista de quem teria sido o agressor. Dificilmente os “leitores
politicamente corretos” chegarão tão longe na leitura. E se chegarem os
gatilhos emocionais já foram desarmados.
Análise
do desdobramento do terceiro título
Ataque a faca em igreja na França deixa ao menos
três mortos e feridos
Nesta reportagem temos o seguinte desdobramento no
início da notícia:
Três pessoas morreram e várias ficaram feridas em um ataque com faca
nesta quinta-feira 29 em Nice, no sul da França. O atentado aconteceu às 9h
locais (5h de Brasília) dentro da basílica Notre-Dame de Nice.
Notem que é comum na linguagem jornalística o uso
de verbos que colocam as vítimas não preferenciais sofrendo a ação geralmente
de um personagem oculto ou neutro, por exemplo: Três pessoas morreram
(…) em um ataque com faca …). Se as vítimas fossem preferenciais o sujeito
da ação apareceria logo no início da frase, como no exemplo hipotético a
seguir: “Homem neonazista ataca com faca refugiado muçulmano na Alemanha”.
Nesta pequena frase foi identificado o agressor como um adepto de Hitler e a
vítima como alguém vulnerável que professa o islã e tenta sobreviver num país
estrangeiro.
Na situação ilustrada no parágrafo anterior os
gatilhos emocionais foram disparados, pois já existe um senso comum contra o
neonazismo (e tem que existir mesmo) e compaixão quando se ouve a palavra
“refugiado”. Temos aqui duas palavras-gatilhos, “neonazista” e “refugiado”. Mas
quando a vítima não é preferencial o conteúdo negativo sobre o agressor, por
pior que seja, é esvaziado. Neste exemplo existe o sujeito ativo e o passivo
bem delineados para que o leitor não tenha dúvida quem é o agressor e quem é a
vítima.
Claramente há nos títulos e respectivos
desdobramentos o uso intencional da linguagem endereçada de acordo com o autor
da agressão. Afinal, é o perfil do autor do crime que determina quais palavras
serão utilizadas nos títulos para dispararem os gatilhos emocionais?
A outra sutiliza linguística está na expressão: “O
atentado aconteceu (…)”. Facas não atacam sozinhas; atentados não são
acontecimentos da natureza. Alguém motivado segura a faca para praticar
atentados.
Os manipuladores da linguagem não colocam nos
títulos as palavras-gatilhos que expressam o horror dos atos terroristas quando
os fatos não são adequados para atender determinados propósitos.
De
ambientalista pacífico a demônio de Paris
“Não vamos desistir de nossos cartuns”, disse o presidente francês,
Emanuel Macron durante uma homenagem a Samuel Paty, o professor francês que foi
decapitado por mostrar desenhos do profeta Maomé em um debate sobre liberdade
de expressão na sala de aula, segundo consta no site bbc.com de 30/10/2020 (acesso
01/11/2020), que trouxe a notícia sob o seguinte título: 'Macron,
o demônio de Paris': por que há tanta revolta contra presidente francês no
mundo islâmico.
De uma hora para outra, manchetes sobre um pacífico
ambientalista foram substituídas pela encarnação do mal na expressão “o demônio
de Paris”.
Imagens do presidente francês estão sendo queimadas em protestos
furiosos em todo o mundo islâmico, onde foi retratado como um
"demônio" e acusado de adorar a Satanás, escreveu o referido
site bbc.com.
As mídias produtoras das reportagens parecem dar
mais repercussão sobre a recepção negativa dos comentários do presidente
francês do que ao atentado terrorista que deu margem ao seu comentário. Em
outros termos, um intolerante religioso estrangeiro mata a facadas três pessoas
na França, no interior de uma igreja católica, e é o presidente francês e a
França o alvo de protestos em vários países do Oriente Médio. Surreal!
Inclusive as mídias televisivas repercutiram tal notícia, pelo menos até então
aqui no Brasil, sem as costumeiras críticas quando o assunto envolve direitos
humanos. A honestidade intelectual deveria ser lugar comum a todos os
profissionais da imprensa, independentemente de gostar ou não do chefe de
estado ou de governo.
Dente por
dente, olho por olho e a cegueira seletiva
Há quem tente fundamentar os atentados atuais
referindo-se às sementes plantadas pelo colonialismo europeu. Então, seria o
caso de também fundamentar a agressão de pessoas a facadas ou a tiros porque os
seus ancestrais há cem anos, duzentos anos ou mais, colonizaram e/ou
escravizaram os antepassados dos vingadores do presente.
Neste caso, vamos ingressar num jogo de mata-mata
se todos os povos resolverem cobrar as tais dívidas históricas. Qual o povo, em
algum momento da história, não foi escravizado? Será que existem loucos na
atualidade que têm fetiche em relação aos imaginários tempos de Thomas Hobbes,
época em que todos guerreavam contra todos?
A escravidão foi um fato lamentável cuja memória
mais recente (até o século XIX) ficou cristalizada nas figuras de comerciantes
europeus comercializando escravos com chefes tribais africanos. Sendo um fato
do passado que envolveu todos os tons de cores, falar em dívida histórica não
passa de uma falácia. Dívidas históricas são impagáveis, pois é uma forma de
fugir das dívidas presentes que já deveriam estar sendo pagas: que tal as
mídias internacionais estimularem as nações europeias a arrumarem a bagunça que
ajudaram a fazer no processo de colonização da África? A melhor forma de
arrumar a bagunça é estimular a democracia e a construção de instituições
mantenedoras de um regime livre e, na sequência, fazer investimentos nessas
nações africanas. O desenvolvimento econômico dessas nações pobres significa
obstáculos aos aventureiros ditatoriais que só sabem perpetuar o ódio, acusando
os outros daquilo que eles próprios se beneficiam.
A pergunta exaustiva que as mídias ocidentais
também deveriam fazer é a seguinte: por que as pessoas fogem de suas nações e
vão para outras com culturas tão diferentes das suas? As mídias em geral
preferem acusar aos brados governos de países democráticos de falharem com os
refugiados, mas cochicham diante dos ataques de extremistas.
Considerando que muitas mídias convencionais não se
exaltam nem contra os atentados por motivos religiosos dentro de suas próprias
nações, por que tomariam partido a favor de cristãos mortos e perseguidos em
vários países onde o cristianismo é minoria? O site vaticannews.va (acesso
em 01/11/2020) traz dramáticas matérias que dão conta dos assassinatos e
perseguições às minorias de cristãos em países tais como Coreia do Norte,
Índia, Laos, Vietnã, Bangladesh, Paquistão, Afeganistão, Níger, Burkina Faso,
Nigéria etc.
As poderosas mídias ocidentais, tão defensoras das
liberdades, apenas cochicham diante das perseguições religiosas que não atendem
seus propósitos.
Com a palavra os diretores e artistas de Hollywood
e os ativistas pelos direitos humanos para condenarem e convocarem
manifestações ao redor do mundo contra ameaças à democracia sempre que houver
denúncia de perseguições a cristãos. Se matar pessoas dentro de seu próprio
país em nome de algum Deus não for ameaça à democracia, então conclamo os
especialistas para definirem o que é, afinal, ameaça à democracia. É um
precedente muito perigoso em desfavor da democracia quando há mídias moderando
as palavras diante de intolerância religiosa sobretudo quando provém de fora de
suas próprias nações. Todos pregam tolerância e paz em potentes microfones, mas
cochicham quando o intolerante não se encaixa nas suas narrativas.
Eventos
idênticos, narrativas diferentes
Como é sabido, são os títulos das manchetes dos
noticiários que ficam gravados na maioria dos cérebros dos leitores. Uma grande
parte do público receptor toma decisões ou apenas forma opinião somente com
base na leitura do título.
Para os títulos das manchetes são escolhidas
cuidadosamente as “palavras-chaves” que acionarão os “gatilhos mentais” que
levarão os indivíduos a se engajarem na prática de alguma ação, cujos
organizadores já estão preparados para colocar o pessoal nas ruas. Quanto maior
e mais rápida for a carga emocional produzida pelas manchetes, maior será a
massa crítica e o evento ganhará grandes proporções por diversas partes do
mundo.
Eventos idênticos ganharão manchetes completamente
diferentes de acordo com os interesses de determinadas mídias em estimular os
indivíduos à prática de alguma ação. Da mesma forma, organizações de direitos
humanos agem ou se omitem diante de eventos idênticos conforme seus filtros
ideológicos. O que mais parece importar não é o resultado do evento, mas quem
causou o resultado. O evento em si é apenas um instrumento de manipulação para
criar rebanhos e não necessariamente para desencadear a luta por justiça. Há
determinados homicídios com requinte de crueldade que não servem como
instrumento de luta pelas liberdades. Já outros se enquadram perfeitamente no
rol das narrativas.
Imagino que exista uma espécie de orquestra
invisível selecionando os eventos que merecem ser alvos de protestos, de
seminários e palestras em instituições de ensino, comentários de políticos, de
intelectuais indignados e discussões nas famosas emissoras de televisão e
rádio.
Entidades
abstratas cometem crimes, mas só nos títulos das notícias
Quando um policial destemperado faz disparos
indevidos contra um homem, logo a instituição “polícia militar” é violentamente
depreciada por muitos jornalistas, intelectuais, artistas, políticos e ONGs de
direitos humanos. A pessoa física do agressor praticamente desaparece diante
dos alaridos e a carga depreciativa é disparada contra a instituição “polícia
militar”. A palavra-gatilho “genocídio”, cujo conceito já se perdeu, logo
aparece nas narrativas de forma exaustiva. É óbvio que ninguém em sã consciência
defende atos violentos contra quem quer que seja. Mas parece que há intenção de
se estimular o ódio por meio dos títulos das manchetes jornalísticas ou de
artigos e palestras. Veja o título de uma notícia publicada em 24/08/2020, site
Uol (acesso em 01/11/2020): Polícia dos EUA atira em homem negro na
frente dos filhos.
Vamos analisar: o curto título da notícia colocou a
arma na mão de uma entidade abstrata chamada “Polícia dos EUA”. E esta entidade
abstrata é apresentada como gigantesca e única, pois representa um país com 328
milhões de habitantes (2019). É o que se depreende com a referida expressão. As
interpretações gramaticais é a mais comumente utilizada pelas pessoas em geral,
inclusive por quem tem nível superior.
É óbvio que todos entendemos que não existe
concretamente uma “Polícia dos EUA” atirando nas pessoas. Trata-se de uma
figura de linguagem que foi usada com a finalidade de ampliar e dar eficácia ao
discurso que se pretende passar, o que não seria possível com o uso restrito e
literal das palavras. A figura de linguagem é um recurso expressivo cujo
efeito, dentre outros, é o exagero. Dizer que “o policial atirou” tem menos
efeito mental do que dizer que “a polícia atirou”. A armadilha da frase leva o
senso comum a condenar a classe pelo ato de um indivíduo. Esta é a intenção da
maioria dos redatores das notícias, formatados de acordo com a visão de mundo
da Escola de Frankfurt.
Literalmente, quem atira são policiais. Entretanto,
dizer que a “polícia atirou” tem o objetivo subliminar de impactar o cérebro
das pessoas com baixo nível de leitura e interpretação. E é justamente desta
forma que se cria o ódio contra a instituição “Polícia” que é composta por
milhares de policiais. Assim, cada policial em cada esquina é transformado na
abstração “Polícia” e passa a ser alvo de protestos por conta de crimes
que ele não cometeu.
A grande sacada desonesta não é estimular apenas o
ódio a um indivíduo isoladamente, mas atingir ao mesmo tempo uma classe inteira
quando a abstração “polícia militar” é depreciada. Se o uso desses recursos
linguísticos é proposital, caberá ao leitor julgar. E verificar também se tal
discurso se aplica a qualquer outra situação que transforma um ato individual
em ato de classe. É por isso que há intelectuais dizendo: eu odeio a classe
média. A partir de uma declaração de ódio contra a própria classe a qual
pertence, fica mais fácil odiar a classe dos outros, principalmente se for uma
classe que prende os bandidos que se encaixam na teoria de vítimas da
sociedade.
Somente no corpo da notícia do título ora em
análise, portanto sem a visibilidade do referido título, é que a matéria reduz
a generalização do âmbito dos EUA para uma localidade específica quando fala em
“polícia da cidade de Kenosha”, mas continua atribuindo o ato ilícito a uma
entidade abstrata. Como já disse, o alvo é a instituição “polícia” em primeiro
lugar. Ainda que o autor do título não tenha tido esta intenção, o fato é que o
filtro seletivo já está incorporado no espírito de muitos profissionais da
mídia.
Não houve preocupação da referida mídia em isolar a
pessoa física do atirador no título da manchete. Bastaria usar a palavra
“policial”. Apenas tirando o acento e acrescentando uma letra já seria
suficiente para reduzir o campo de acusação contra uma nação de 328 milhões de
habitantes para uma só pessoa. É óbvio que ninguém atribui culpa a uma nação
inteira por conta de crimes de seus nacionais. Mas quero apenas ilustrar também
o teor antiamericano do título. Dificilmente se verá a seguinte manchete
jornalística: “Polícia da Dinamarca fere a tiros refugiado”; é mais provável
vermos: “Refugiado é ferido por policial dinamarquês”. O resultado foi o mesmo,
mas o impacto da notícia soa de forma diferente.
Entidades abstratas e classes sociais ou categorias
de pessoas não praticam crimes; somente pessoas físicas são os sujeitos ativos
de todas as condutas e devem arcar com as consequências dos seus atos. A
conduta ilícita jamais pode passar da pessoa que a praticou.
Parece-me que há muito interesse em classificar a sociedade
por grupos: hétero X homossexual, homem X mulher, branco X negro, cristão X
muçulmano, militar X civil e por aí vai. Vamos deixar o versus apenas
para o esporte.
Infelizmente os estímulos a ressentimentos
coletivos viraram mercadorias ideológicas com elevado poder de fragmentar a
sociedade.
Conclusão
O título de qualquer manchete é uma síntese para
formar opinião. As mídias também sabem que a maioria esmagadora das pessoas com
menos de 30 anos só lê o título das reportagens jornalísticas. A própria Folha
de São Paula já admitia, em matéria de 23/09/2013 (acesso 01/11/2020)
que, Nas redes sociais, internautas praticamente só leem títulos de
postagens. De lá para cá várias pesquisas apenas constataram o óbvio: a
população mais jovem só lê o título, comenta sobre a notícia e compartilha, mas
não lê a notícia até o fim. Infelizmente também há muitos professores agindo
desta forma.
Grosso modo, grande parte da população de
“leitores”, inclusive muito além dos 30 anos, se baseia no título da notícia
para formar opinião, ainda que leia a notícia até o fim. O título de qualquer
coisa tem como objetivo persuadir o leitor. E quanto menor o nível de leitura
de uma população, maior o sucesso dos títulos disparadores de gatilhos
emocionais.
Na era do analfabetismo funcional vence quem
escreve o texto mais curto com potencial para despertar as emoções. O resto
será feito pelas imagens e pelos áudios carregados de entonações.
Imagine que o corpo de uma notícia traga
informações sobre a motivação fútil de um criminoso. Se o título for bem
trabalhado linguisticamente para esvaziar a percepção da conduta criminosa do
agressor, não haverá muito interesse pelo fato em si. Por isso é comum títulos
tais como: “Pessoas morreram em ataque a tiros” ou “Dois homens foram mortos a
facadas”. Os sujeitos das frases estão ocultos e as vítimas não foram
identificadas. Mas o gatilho das emoções será disparado se o título for assim:
“Homofóbico mata homossexual a facadas”. Nesta pequena frase já sabemos quem é
o criminoso e qual foi o motivo fútil do crime. Em outros termos, antes mesmo
da conclusão de um inquérito policial a mídia já confirmou a motivação do crime
e identificou o agressor como alguém que pratica “crime de ódio”. Mas se o
inquérito concluir que o criminoso também era homossexual…, ficaremos sem
saber. Crimes cujas vítimas e agressores estão na mesma categoria são apenas
notícias de última página. Quando são.
As palavras-chaves que trazem adjetivos negativos
com carga emocional para disparar gatilhos mentais são aplicadas a grupos de
pessoas que possam ser relacionadas a uma ou mais das seguintes
características: homem branco, hétero, conservador, cristão/evangélico,
defensor do capitalismo. Se, por exemplo, um debiloide que tenha pelo menos uma
dessas características praticar um ato criminoso contra quem quer que seja,
pronto, já é suficiente para se disparar as palavras-gatilhos: fascista,
homofóbico, misógino, genocida, intolerante religioso, racista e por aí vai.
Qualquer pessoa portadora dos quesitos acima acaba sendo alvo, ainda que
indiretamente, dos tais termos pejorativos. Basta que ele se diga conservador
para ser identificado como portador de um pacote de defeitos pertencentes a uma
classe retrógrada que precisa ser depreciada e ridicularizada.
Mas se o tal debiloide não for branco, nem hétero,
nem cristão ou muito menos conservador, então ele será isolado do grupo ao qual
pertence e será tratado como um criminoso comum. O grupo não será maculado com
as palavras-chaves usadas para os gatilhos emocionais.
É comum os títulos de muitas reportagens
construírem arranjos linguísticos que criminalizam e adjetivam, de forma
subliminar, categoria de pessoas ou instituições. A linguagem atual é
subliminarmente construída para que o ato criminoso, do presente ou do passado,
possa ir muito além da pessoa do criminoso, desde que os propósitos narrativos
sejam atendidos. É por isso que atualmente muito se fala em “dívida histórica”.
Os homens de boa vontade lutaram por séculos para
que a punição dos criminosos, dos devedores e até mesmo os adjetivos negativos
não fossem além da pessoa do criminoso, do devedor ou do ofensor. Culpar as
gerações atuais pelos erros das gerações passadas e cobrá-la uma dívida que
teria sido contraída há séculos, não seria isto um retrocesso? A luta por
direitos para uns está condicionada à depreciação e culpabilidade de
outros?
Os sites abaixo referem-se às notícias comentadas no texto.
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/10/29/ataque-a-faca-deixa-mortos-em-nice-na-franca.ghtml
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