UM PASSEIO POR CENÁRIOS URBANOS: PRAGAS NA AGRICULTURA, DESEMPREGO ESTRUTURAL, ENSINO DEFICIENTE, POBREZA CRÔNICA E DESCIVILIZAÇÃO

Aguimon Alves, 16/09/2020

                 

Talvez o leitor já esteja perguntando o que tem a ver pragas na agricultura com áreas urbanas. Logo esta associação será entendida. Farei uma costura ao longo do texto para unir cada um dos subtítulos de “Um passeio por cenários urbanos”.

O processo de urbanização é um fenômeno mundial. Vários países já cessaram, inclusive o Brasil. Mas ainda há gigantes que caminham para as cidades. Atualmente a China é o palco do maior êxodo rural de todos os tempos. E é impossível deter esta marcha.

O grande problema da humanidade agora se concentra nas cidades sem infraestrutura para acomodar enormes contingentes populacionais que demandam bens e serviços básicos, tais como moradias e saneamento.

Segundo o IBGE, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2015, o Brasil já contava com 84,72% da sua população vivendo em áreas urbanas e a tendência é aumentar esse número.

Dados de 2017 produzidos pela EMBRAPA – Empresa Brasileira de Agropecuária revelaram que mais de 80% da população brasileira habita 0,63% do território nacional. Isso mesmo, 80% da população mora em menos de 1% do território brasileiro. Lembrando que o Brasil é o quinto maior país do mundo com 8.510.295 km² e também a quinta maior população do planeta com 211.500.000 habitantes, estimativas do IBGE de maio de 2020.

Como a EMBRAPA chegou a esta conclusão?

Muitas pragas (insetos em geral) que atacam as lavouras têm o seu habitat nas áreas urbanas.  A EMBRAPA precisava mapear toda a área urbana do Brasil a fim de ter a real dimensão deste território que poderia ser alvo de alguma política pública no controle de insetos que atacam a produção agrícola.

Por exemplo, a doença denominada greening ou huanglongbing (HLB) é transmitida por um inseto sugador que também ataca a murta, planta decorativa comum em jardins de muitas cidades. Este inseto-praga (Dioaphorina citri) vetor do HLB transmite a bactéria Candidatus Liberibacter asiaticus, atualmente a principal causadora de uma doença que ataca 99% das plantas que produzem citros (laranja, limão, tangerina) no Brasil. Qualquer ação contra esta praga deve levar em consideração as áreas urbanas que fazem uso decorativo da planta denominada murta que abriga insetos vetores de bactérias que atacam a agricultura de citrus. Mas qual a importância de saber onde estão esses tais insetos?

O Estado de São Paulo, sozinho, é o maior produtor e exportador mundial de laranjas e suco de laranja, o que coloca o Brasil na dianteira isolado. E as exportações já aumentaram neste ano de 2020 por conta da pandemia do Covid 19.

A Organização Mundial da Saúde recomenda o consumo mínimo de 45 mg/dia de vitamina C, que é atingido com a ingestão de uma laranja, alimento que ajuda no aumento da imunidade.

Imagine uma praga atingindo a lavoura de citrus! Seria um desastre para a economia deste setor com a eliminação de milhares de empregos diretos e indiretos e também provocaria queda expressiva na arrecadação de impostos.

O objetivo da EMBRAPA era fazer um mapeamento o mais exato possível das áreas urbanas utilizando imagens de satélite de alta resolução, visando o reconhecimento de concentrações visíveis de edificações, loteamentos e arruamentos.

Este mapeamento feito pela EMBRAPA foi finalizado com o somatório das áreas de todos os polígonos urbanos do Brasil, o que totalizou 54.077 km2, que corresponde a 0,63% de todo o território brasileiro, conforme já mencionado. Isto nos revelou que a maioria esmagadora da população brasileira vive num território extremamente pequeno em relação à área total do Brasil, ou seja, menos de 1% do território brasileiro é ocupado por áreas urbanas que abrigam 80% da população brasileira.

Grande parte desta população urbana reside nas favelas, onde há gravíssimos problemas de saneamento básico. Nesta parte da cidade que não tem infraestrutura, a maioria dos indivíduos estão fora do mercado de trabalho formal. Até a presente data o Estado brasileiro foi incapaz de engendrar políticas públicas sólidas para permitir ampliação na oferta de empregos de qualidade e nem conseguiu produzir política habitacional capaz de erradicar as moradias insalubres.

Estamos diante de um novo mundo, o mundo da tecnologia dotado de inteligência artificial que se distancia cada vez mais do mundo despossuído das estruturas básicas que dão dignidade, quais sejam, saneamento e moradias salubres.

O processo de evolução tecnológica, no qual todos estamos inseridos, é irreversível e reclama maior capacitação do indivíduo ao invés de se cogitar o enfrentamento deste avanço tecnológico na tentativa de atrasá-lo e gerar menos desemprego estrutural, que é o desemprego produzido pela eliminação de profissões e atividades que passam a ser desempenhadas pelas tecnologias. Já superamos a era da indústria tradicional onde as fábricas eram celeiros de empregos e desenvolvimento para a região onde elas atuavam.

O tradicional operário da fábrica, constantemente estimulado a lutar contra o capital por meio da greve, já se tornou apenas um dado histórico, visto que as mudanças nas relações de trabalho tornaram as greves quase que obsoletas diante da menor dependência do capital em relação ao trabalho, devido ao elevado grau de automação e robotização nas indústrias. É necessário que os trabalhadores construam uma outra forma de pressão diferente das tradicionais greves.

A revolução tecnológica está acabando com as últimas fábricas cheias de chaminés e rodeadas de populações proletárias. E justamente pelo fato de as indústrias terem inicialmente utilizado expressiva quantidade de mão de obra é que se tornou impossível um outro tipo de revolução, a do proletariado. Algo que foi construído no imaginário de alguns pensadores do século XIX.

A realística revolução tecnológica está contribuindo para o surgimento de centros de produção menores e com considerável automação. Não se produz mais para estocar em grandes quantidades. Produz-se apenas o suficiente para vender. E este intenso desenvolvimento tecnológico gerou a desproletarização, transformando milhões de indivíduos em seres incapazes de sobreviverem por conta própria. Se algo não for feito com urgência no âmbito da educação das massas, esta realidade de dependência tenderá a aumentar.

O problema nunca foi o desenvolvimento tecnológico, mas sim um deficiente sistema educacional que já está revelando um paradoxo entre grau de escolaridade e analfabetismo funcional, problema que já transborda para o ensino superior. Sistema de ensino e mercado de trabalho estão desconectados. Falam línguas diferentes.

Muitos discordam que a escola deva estar de alguma forma conectada com o mercado de trabalho. Que a escola serve para formar cidadãos. Então, eu pergunto: o direito de ter um emprego de qualidade não é um direito fundamental para o ser humano exercer sua cidadania? Se a escola não serve minimamente para dar oportunidades a um jovem, de que ele viverá no futuro? Quem colocará comida na sua mesa? Como alguém pode se realizar profissionalmente se a escola não orienta seus alunos para profissões do futuro? 

A modernização está avançando cada vez mais não só nas atividades industriais, como também nas atividades primárias com a intensa mecanização da agricultura, bem como nas atividades terciárias (comércio, serviços, transportes, entretenimento etc.). Estas atividades foram invadidas pela internet e outras tecnologias.

Quanto maior a deficiência no ensino, maior o desemprego estrutural nestes tempos de modernas tecnologias. E continuaremos a presenciar pessoas sendo substituídas por máquinas, o que não significa aumento do desemprego quando existe um sistema de ensino eficiente. Se existisse uma relação de causa e efeito entre tecnologia e desemprego, certamente os países que mais utilizam automação sempre seriam os recordistas de desemprego. E não é o que acontece.

A única verdade que se impõe é a associação do desemprego com o baixo grau de instrução de um povo. Mas, não basta apenas distribuir cursos superiores como se isto fosse a solução. É preciso entender o que as pessoas necessitam e quais são as suas preferências e desejos. São realidades que determinam o caminho das novas profissões. Parece-me que a escola no Brasil ignora tais realidades e vive ensinando como o mundo deveria ser e não como ele é.

A mudança de uma economia mundial baseada na tradicional fábrica para uma economia de empresa tecnológica, baseada na automação e robotização é, sem dúvida, muito mais traumática do que foi a mudança da economia baseada na agricultura para a indústria que aconteceu há séculos. A Revolução Industrial iniciada no século XVIII, intensificou o uso de mão-de-obra ao absorver o camponês. Tal transição do campo para a cidade foi mais gradual e deu tempo para a sociedade agrícola se adaptar ao maquinismo, por isso houve um enorme crescimento populacional e aumento na expectativa de vida.

Mas, a apressada revolução tecnológica de hoje não dispõe de tempo para que muitos povos se adaptem às inovações, simplesmente porque esta revolução descarta a mão-de-obra de atividades que se tornam obsoletas. É necessário, portanto, reinventar o trabalho e o sistema educacional se quisermos acompanhar as frenéticas inovações.

Estamos saindo de uma fase onde a cidade era palco de reivindicações de direitos sociais por meio do trabalho e já ingressamos numa nova e cruel realidade. A cidade, particularmente no Brasil, virou o lugar das “guerras urbanas”, cujos atores não são mais os trabalhadores de um lado e capitalistas de outro. Agora, o enfrentamento assimétrico se dá entre criminosos e trabalhadores formais/informais. Os tradicionais trabalhadores não são mais estimulados a fazerem greves. Os criminosos é que são estimulados a oprimirem quem faz uso das atividades lícitas para sobreviver. Criminosos são estimulados de forma subterrânea pela cultura da impunidade e pela culpabilização de uma sociedade abstrata. São estimulados também por um falso discurso que induz a associação entre pobreza e criminalidade. Se isto fosse verdade, não haveria ricos cometendo crimes, como por exemplo, políticos e grandes empresários desviando dinheiro público para empreendimentos privados.

Criou-se no contexto urbano, e já faz algum tempo, espaços segregacionados, não para isolar os moradores, mas como estratégia de domínio de territórios. Estes espaços informais são sustentados (e também frequentados), por moradores da cidade formal. Na cidade informal praticamente tudo é subterrâneo: as trocas comerciais, as moradias, a delinquência, a prestação de serviços, a circulação das drogas e até as leis, que não são escritas, mas são eficientes. Mais eficientes do que as leis amplamente discutidas e aprovadas por um corpo de parlamentares.

A perpetuação da impunidade e de um longo processo de pobreza crônica, ao longo de séculos, é de fato a semente que, infelizmente, fez frutificar no meio urbano dos países periféricos comportamentos que apontam para um processo de descivilização, que já se tornou uma ameaça real à paz do conjunto da sociedade. A cidade informal parece que saiu dos filmes futuristas. Submoradias desprovidas de tudo que é básico convivem com a presença de criminosos portando iPhone, GPS e armas sofisticadas com mira laser. É o paradoxo da modernidade onde os valores foram invertidos.

A pobreza crônica de multidões em qualquer lugar parece ser um eterno projeto de poder combinado entre governos e gigantescos grupos econômicos que não gostam da concorrência no livre mercado. Se os pobres e miseráveis tiverem acesso aos direitos sociais por conta própria, ele deixa de ser pobre. Os tradicionais estímulos para se lutar contra quem progrediu perde o sentido. Seria preciso reinventar as lutas. A pobreza de multidões é uma janela importante para o surgimento e manutenção de governos que escondem suas mentalidades autoritárias e se apresentam como salvadores de multidões distribuindo víveres para os dependentes crônicos do Estado.

A pobreza crônica só pode ser combatida com a estabilidade socioeconômica. Desta forma, a civilidade é mais um dado socioeconômico do que um dado histórico. Pois, numa mesma época, convivemos com barbárie e civilização, duas realidades contraditórias presentes nos mesmos espaços urbanos.

 

 

Referências

 

https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18313-populacao-rural-e-urbana.html

https://www.ibge.gov.br/

https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/28840923/mais-de-80-da-populacao-brasileira-habita-063-do-territorio-nacional

https://www.grupocultivar.com.br/artigos/controle-do-inseto-vetor-do-greening-principal-doenca-do-citros

https://www.fundecitrus.com.br/doencas/greening

https://www.fundecitrus.com.br/pragas/diaphorina-citri

http://www.cdrs.sp.gov.br/portal/imprensa/noticia/maior-produtor-de-laranja-e-exportador-de-suco-de-laranja-do-mundo-sp-deve-manter-setor-ativo-para-atender-demanda-pela-fruta-rica-em-vitamina-c

 

 

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